Entre-vista com: Freud

Entre-vista com: Freud

Vi Sigmund Freud andando na rua em direção à sua casa e logo depois nós já andávamos juntos em seu jardim até que, cansado, ele tomou a direção de sua poltrona. O que não pude sentir e só dificilmente pude imaginar é a incomensurável dor que ele ainda suportava. Talvez, ao final da transcrição dessa curta entrevista, o leitor possa vislumbrar, então, em que sentido as palavras aqui, como sempre, estão tapando buracos.

Eu não havia marcado um horário com o doutor Freud. Diariamente, durante o período de um mês no qual me encontrava em Londres, eu caminhava duas vezes ao dia pela Fitzjohn’s Ave, pelas ruas acessórias e, principalmente, pela Maresfield Gardens, em frente a casa desse ilustre doutor. A pretensão, que não posso esconder, era realmente encontra-lo. E fiquei enormemente surpreso ao vê-lo caminhando junto com a doutora Gaia e o doutor Vico, seus colegas e amigos que zelavam pela sua saúde. Com medo, aproximei-me.

Cumprimentei o doutor e seus colegas. Aos poucos o dia ficava mais quente enquanto aproximava-se o meio-dia. O ápice do incidente suporta naturalmente quem vive para esperar o inesperado. E ao encontro de tal fato, caminhamos. Tentei não expressar meu assombro quando, enfim, estávamos subindo e descendo uma pequena trilha do jardim da casa. Então o encontro mesmo girou em torno do seu próprio cenário. À beira dos oitenta anos e com uma força preciosa para ainda tocar as suas plantas, Freud interrompeu a cadeia dos pensamentos aos quais seguia a sua fala, trazendo à tona a lembrança de um fato específico que talvez estivesse por trás do seu discurso, ele disse: “esses ciclamen são as flores prediletas da minha esposa”.

Não me anunciei como jornalista que deveras não sou. Apenas disse ao doutor Freud que tenho lido muito os seus escritos e acompanhado a sua vida com muito interesse. Ao final da vida, agora entendo, “o eterno aborrecimento de viver finalmente passará” – recordo que ele disse em algum momento. E, como a necessidade de estabelecer ligações forçadas não considera nada secreto nem seguro, eu o interpelei a bem dizer unicamente, e todo o mais escutei. Em outro momento ele disse: “como são estranhas à nossa consciência as coisas pelas quais nossa vida mental é governada”.

Nesta manhã, quase dez anos após conceder aquela que até hoje é uma das suas únicas entrevistas (prestada ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926), Sigmund Freud fez uma coisa de gato: no meio de um apaixonado discurso, ficou imóvel e rígido, olhando fixamente um ponto do ar em que para mim não havia nada para ver – e obedeceu a uma imposição inelutável de usar reticências.

Eu expressei com deferência, à sombra de um sonho e incrivelmente tão exausto quanto o doutor, algo que dizia respeito ao encontro com alguns seres humanos que, como ele dissera outrora, “quase o tinham compreendido”. “- Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual”, ele tornou. Mas Freud guiava o encontro e o assunto. E disse, quase devaneando, “logo o buraco estará grande para que eu possa sair da minha pele”.

Em 1935, aos 79 anos de idade, vejo em cima da sua mesa uma carta que em breve estaria indo ao Correio Postal e a caligrafia inconfundível de Freud. Tratava-se das congratulações a Thomas Mann pelo seu sexagésimo aniversário. Percebendo meu deslocamento de olhos ele profere, por fim, com toda a dificuldade, algo que enigmaticamente não estava ali sobre a mesa, sob aquela grafia que era sua, mas escrito na verdade em relação a outro escritor (Edgar Alan Poe). Ele disse: “há uma atração especial em estudar as leis da psique humana em indivíduos extraordinários”.

Após isso, eu não cheguei a insistir para ficar, pois o cansaço dele era nítido e Gaia e Vico, que nos acompanhavam sempre, também já faziam expressões de fadiga que inconfundivelmente indicavam a hora da despedida. Freud sentou-se na sua poltrona. Eu apertei a sua mão e agradeci por esse momento. Depois saí.

Transcrevo agora, pois, em forma esquemática de entrevista a única expressão mais objetiva desse encontro difícil de objetificar, com a intenção de que isso possa contribuir para os futuros estudos do pensamento freudiano e para a memória do seu momento histórico culminante.

 

Dr. Freud, o senhor considera que o seu texto sobre a Psicologia das Massas é uma análise do que contemporaneamente se consubstancia com o fascismo e com o nacional-socialismo?

FREUD: Nesse texto digo em algum momento que a massa está sujeita ao poder verdadeiramente mágico das palavras. As massas requerem ilusões às quais não podem renunciar. O seu caráter acrítico faz com que todos a ela submetidos estejam como que sob o efeito de um encanto magnético. Ao mesmo tempo em que ela aparentemente tudo explica, deseja furtar-se a si própria à explicação e suspender a particularidade por meio de uma entrega amorosa. O líder precioso substitui um ideal não alcançado pelo Eu. A igreja, o exército e o estado são expressões disso, posso dizer. E por isso, com todos os seus caprichos, a linguagem corrente é fiel a alguma realidade.

 

Freud Altivo