“Divertir-se é estar de acordo”

Isto não é um roteiro de novela

Prólogo (lido em tela preta com as palavras sendo datilografadas até encher a tela)

Aceitos sem resistência, os patrões apresentam-se como meros resultados das necessidades dos consumidores. Assim é que a ideia hegemônica acobertada sob o manto da “audiência” e do que quer que signifique “ibope” dissemina inevitavelmente a moral de escravo que rege na prática as telenovelas brasileiras exportadas como bens industriais para inúmeros países imiscuídos nessa trama econômica. “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma”, (TA/MH). A desculpa esfarrapada de que se modifica isso ou aquilo em todas as telenovelas em nome do que desejam as pessoas submetidas ao seu jugo quer fazer esquecer que a lógica que se impõe a partir dessa espetacularização é a do fetiche, segundo a qual “o que aparece é bom; o que é bom aparece” (MRK). Isso certamente expõe as relações concupiscentes da indústria cultural com a expansão dos dispositivos de poder, cuja conformação exige dos “espectadores” assujeitados a conformidade com o maniqueísmo e o gregarismo que organizam as “necessidades” do rebanho. Mas não é estranho que tudo isso seja erigido desde uma racionalidade bem específica. Significa que a sua produção é administrada por especialistas. Conhecedores dos clichês do esplendor conciliante, esses técnicos traduzem tudo de forma estereotípica – e o que se convencionou chamar “arte” nesse tipo de produção em série é o que se submete às fórmulas cuja rotina foi travestida de natureza. Segundo a fórmula da “existência” em que a maioria dos homens trabalha como escravo, conscientes disso ou não, o jogo lógico tem se constituído para a manutenção da vida danificada enquanto tal – da exploração sob as mais diversas melodias, sob as mais diversas atrocidades que no final das telenovelas “necessariamente” se aprumam resignadas em face do existente. Enquanto te exploram tu gritas gol! Enquanto te assujeitam tu gozas. Enquanto de objetificam tu postas no facebook. Mas a quem exatamente se refere esse “tu”, esse “te”? Não parece que “tu”, leitor, sejas quem realmente padece enquanto a maquinaria gira sem sair do lugar. Aliviado com a forma histórica da tua existência, tu, leitor, ainda insiste na ideologia que não escraviza a “ti”, mas o outro que se subsome e que se entrega ao teu gozo pacífico diante das atrocidades de uma organização social que em tudo respeita a lógica da violência institucionalizada a qual submete todos às grandes organizações midiáticas. Os “finais felizes” “necessários” às produções de massa colonizadoras podem ainda encontrar justificativa na “realidade” do que é mostrado pelas telenovelas? Mas a vitória é dupla dessas agências: “o que ela extingue lá fora é o que ela pode reproduzir a seu bel-prazer como mentira” (TA/MH). E o caráter “afirmativo” dessa cultura de boa consciência, que é essencialmente diferente da luta diária pela existência, celebra e exalta a si própria assim como exaltou historicamente a escravidão, a ditadura e as atrocidades econômicas e policiais de todas as espécies. Mas esses objetos culturais assumem a solenidade gregária, ao mesmo tempo elevada acima do cotidiano e rebaixada aquém da sua concretude. Obstinadamente, o “público” cordeiro que se submete à repetição e à expansão dos métodos de fazer sucumbir a diferença insiste na ideologia que escraviza a si e aos outros. Principalmente aos outros. A doxa que vige e que rege a construção moralista das telenovelas, em seus traços fundamentais, é idealista. Sua auto-exaltação, legitimadora. “Elas ocultam a atrofia corporal e psíquica do indivíduo” (HM). Mas ela expressa, contudo, uma situação verdadeira. Sua “arte” nega sua própria autonomia. “O poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida” (TA/MH). E assim trata-se de uma imagem da felicidade. Não há desejo. Contentamento e a complacência. Há soterramento. Postar-se a serviço do existente. Às cegas. Produção em série de objetos sexuais. Produção de autômatos. Alguém defende o direito de mostrar-se estúpido diante da esperteza do espetáculo. Do seu grupo, outros querem o direito à mediocridade. Alguns também querem o direito à homofobia, ao machismo, ao fascismo – e o direito sempre se encontra ao seu lado. Os censores de ontem, os golpistas de ontem são os que proferem hoje “liberdade de expressão” como jargão. Apenas como jargão. Censuram tudo o que não lhes presta serviço. Querem o direito ao seu lado. Eles têm. Porque o direito está ao lado do capital, como sempre – e dos seus fantoches. Contemplativos e arrogantes. Cheques. Relógios e pulseiras. Bolsas, xeques e praias. Notas, celebridades e consumidores. Final feliz. Moralismo. Invisibilidade e escravidão. A liquidação do trágico, através do endosso piegas que promete a reconciliação final universal, oferece como paraíso apenas a volta ao cotidiano organizado em torno da figura do consumidor. Seja como for, é sempre igual. É preciso se arranjar como o que é oferecido. Não somente se faz crer que o logro oferece a satisfação. – E tudo enfim gira em torno do coito: enquanto exploram, tu gritas gol! Gregariedade da linguagem. Atrofia da linguagem. Acomodamento. Dinheiro. Celebridade. Estereótipo – sob o manto da neutralidade e da naturalidade veiculadas subliminarmente. Inconsciência de seres falantes. Espírito hegemônico da opinião pública confundida com a opinião publicada. Dominação legal. Concupiscente. Está em avença com o apagamento da história; em acordo com os métodos mais avançados das pesquisas de marketing. “Divertir-se é estar de acordo” (TA/MH). Linguagem absorvida em comunicação, todo o resto é economicamente suspeito. A cegueira e o mutismo erigidos em organização social estendem-se de forma onipresente e onisciente até as casas daqueles que estão tranquilos diante da opacidade do mundo – e que creem em Deus. Limitados à opacidade dos dados que lhes são entregues arbitrariamente através dos seus televisores, como fragmentos de um grande saber, os receptores podem cada vez mais acreditar em Deus, afinal, a telenovela e a televisão em geral é tão onisciente como o crucificado. São as fórmulas do encantamento mágico.

Após a leitura do prólogo, a novela não teve continuidade. Não pôde acontecer. Foi encerrada. Novela de um único capítulo: o início que é já o fim.

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